O "Café do Geléia", fundado por Giovanni Di PaZZo, começou como um pequeno café na esquina da rua Orlontis com a rua Coronel Verde. Servindo apenas poucas variações do simples café o lugar foi ganhando fama devido ao seu ambiente altamente aconchegante contendo fotos de viagens feitas pelo "Geléia" (apelido carinhoso de Giovanni), relíquias e artefatos adquiridos em suas diversas aventuras pelo mundo em busca do melhor café que existia. Certo ano, Giovanni conseguiu por métodos misteriosos o melhor café que os que ali passavam já haviam provado e começou a plantá-lo e serví-lo em seu pouco famoso "Café do Geléia". O lugar ganhou fama pelo seu café fabuloso e pelo ambiente que sugeria um conto de histórias entre amigos. Agora vivemos estas histórias... Bem vindos ao "Café do Geléia".

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Quem Possa Interessar...


            A noite estava tranqüila no Café. O lugar estava com a placa de “fechado” exposta para a rua e só os clientes de sempre ainda estavam por lá. A Cineasta conversava com um Artista que não respondia muito, Menino Ottis andava para lá e para cá e de vez em quando olhava para a televisão ligada no canal de desenhos para ele, o Conde e o Gótico conversavam e o Viajante estava sentado sozinho em seu canto contemplando a noite.
            Geléia estava atrás do balcão mexendo em uma caixa que achara no porão. Quando os clientes perceberam o barulho, alguns vieram ver do que se tratava.
            - E aí, Geléia! – Disse a Cineasta enquanto acenava ao andar. – Qual é a da caixa?
            - Devo dizer que estou assaz interessado nela, meu caro! – Dizia um já empolgado Conde.
            - Algumas velharias que encontrei no porão. Tem algumas coisas bem interessantes aqui...
            Depois de pedir licença o Conde começou a dar algumas olhadas por cima. Interessou-se por uma corrente de pescoço com um retrato dentro. Uma mulher jovem e linda cuja foto devia ter 100 anos ou mais e atrás da qual estava escrito “Para meu amado. Que esta seja uma luz em seu caminho para casa.”.
            - Eis que em algum lugar do globo uma alma se contraiu em desespero por perceber a falta de tal artefato! – o Conde segurava a corrente com força enquanto a segurava acima de sua cabeça onde a face derramava uma lágrima ao pensar na história do item.
            - E estas fitas? – Perguntava a cineasta.
            - Não sei... Mas dê uma olhada nelas em sua casa... Quem sabe não as exibimos aqui em alguma noite? – Respondeu Geléia enquanto pegava, cegamente, um envelope.
            O papel estava lacrado com um selo de cera irreconhecível. O abriu e percebeu que dentro havia uma carta escrita em um papel amarelado e levemente mofado nos cantos. A tinta estava sumindo, mas ainda era legível então começou a ler para si enquanto os outros olhavam os conteúdos da caixa.

            “A Quem possa interessar...
Escrevo isto para contar, a qualquer que possa um dia ler, a minha breve história....
            Nos conhecemos no final de Novembro eu e ela. Éramos dois solitários no mesmo local e nos vimos ao longe. Trocamos olhares tímidos antes de qualquer um tomar uma atitude e ir até o outro para tentar conversar. Não foi surpresa quando eu tomei a decisão e fui até ela dizendo um simples “Oi.”. Ela respondeu timidamente e lá ficamos. No começo a conversa foi mais difícil, mas com o tempo acabamos nos descontraindo e a conversa seguiu muito bem.
            Ela era linda. O grupo que estava fazendo musica ao fundo criava uma trilha sonora perfeita para nós dois. Não sei se ela sentiu o mesmo que eu, mas eu me apaixonei naquele momento. Nos beijamos naquela noite. Seus lábios tinham um gosto único que nunca cheguei a experimentar de novo... Seu cheiro me acalentou a mente e trouxe lágrimas aos meus olhos mais vezes do que posso me lembrar. Ela era linda.
            Ela não era graciosa, era um pouco desastrada. Não era a mais elegante do local. Mas para mim ela era a única e a mais linda naquele momento.
            Mantivemos contato e continuamos nos encontrando.
            Ela adorava passeios em parques. Lembro-me de todos os encontros que tivemos em meio a árvores, flores e piqueniques. Quando o sol começava a se por, ela se levantava, tirava as sapatilhas e, de pés descalços na grama, começava a dançar. Sua silhueta se movimentando escura contra o céu laranja me deixava paralisado olhando cada movimento do corpo curvilíneo. Ela queria ser dançarina e eu a apoiava em todas as decisões que tomava quando se tratava deste e de muitos outros assuntos.
            Eu queria dar proteção, conselhos, amor sincero e felicidade para ela. Mas por mais que eu sentisse felicidade ao lado dela, um pequeno fragmento de dúvida sempre existiu no meu coração por mais que eu sempre o ignorasse. Acredito nunca ter ouvido um “Eu te amo”. Vindo dela eu só ouvia “Eu te amo também”. Mas queria seguir em frente conosco.
            Ela não.
            Durante muito tempo não entendi o porquê. Talvez ela achasse que não tinha afeto o suficiente se comparando ao meu. Talvez ela estivesse cansada de tanto afeto. Talvez eu não estive sendo afetivo o suficiente... Muitas coisas se passavam na minha cabeça.
            Demorei a ter um pequeno momento sem ela na minha cabeça. Eu pensava nela todos os dias e no como poderíamos ter dado certo. Lembrava-me dela dançando. Lembrava-me de seu cheiro e de seu gosto. Do perfume de seus cabelos. Da pele macia correndo pelas minhas palmas...
            Ela depois conheceu outro homem. Tiveram um relacionamento que nunca compreendi... Mas ouso dizer que pelo pouco que ouvi do assunto, ela foi infeliz durante e depois de muito tempo terminado a relação...
            E aqui agora, nesta cama de hospital eu fico em observação para um possível segundo ataque cardíaco e tudo que me pergunto... É se ela viria me visitar...
            Obrigado pela atenção, leitor.”

            Geléia ficou em silêncio por um tempo.
            - O que foi, Geléia? – Perguntou a Cineasta com a mão no ombro do homem. Até o Artista havia se levantado para ir para perto dele.
            -... Gostei desta carta. Ela merece um espaço na parede...
            Ele se apressou e a colocou em um vidro reserva que tinha por perto e o pendurou na parede em um espaço vazio. Ficou observando a nova peça adquirida junto aos outros e falou:
            - Talvez alguém já tenha lido esta carta. Talvez ela tenha ido visitá-lo. Mas acho que esta carta diz muito sobre este lugar...
            Todos o olharam por um segundo esperando a frase que iria se seguir.
            - Aqui é um local que acolhe aqueles que não tem para quem voltar.

"Talvez alguém já tenha lido esta carta. Talvez ela tenha ido visitá-lo. Mas acho que esta carta diz muito sobre este lugar..."
 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Exorcismo

            Mais uma noite de insônia. O Artista Solitário, percebendo que não dormiria hoje, foi ao Café do Geléia e pediu o de sempre. Levou consigo seu caderno e o velho lápis 3B que estava quase acabando. Borrachas sempre foram desnecessárias.
            Se dirigindo à sua mesa costumeira percebeu algo diferente. A Cineasta Desacreditada estava lá sentada, óculos brilhando sob a luz fraca, mão esquerda colocada embaixo da axila direita, mão direita mexendo e remexendo o expresso à sua frente. Ele caminhou devagar com o caderno embaixo do braço e o olhar pesado de sempre e logo se sentou no assento estofado oposto ao dela.
            - Sem sono de novo? – Ela perguntou sem tirar os olhos da bebida.
            - Só pra variar um pouco. O que está fazendo aqui? – Ele se debruçou na mesa.
            Ela mexeu um pouco mais na bebida, entortou a boca de leve e disse suspirando:
            - Eu assisti “O Exorcista” hoje... – Pegou a xícara e levou aos lábios.
            O Artista abriu seu caderno e começou a rascunhar. Nada lhe vinha à mente, mas rabiscos aleatórios têm o péssimo hábito de deixar uma idéia para trás. Às vezes tarde demais.
            - Você já assistiu esse filme, cara? – Arriscou a Cineasta.
            - Não. Filmes de Exorcismo não são meu forte... – Continuava rabiscando.
            - É que acho meio estranho, sabe? O Diabo em pessoa tomando posse de uma menina... Quero dizer, o que ele pode obter disso? Ele não vai conseguir poder político nem força física... Ela tem 12 anos, pelo amor de Deus!
            - As vezes esse demônio não é compreendido...
            - O que quer dizer? – Ela tomou um gole de café e rapidamente tirou dos lábios ao perceber que ainda estava muito quente.
            - Bem, quero dizer... Imagine que você vive no inferno... Alguns dizem que lá deve ser mais legal que o céu e tudo o mais... Mas acho que uma hora você se cansa...
            - Então possúi uma menina pra tentar viver normalmente de novo?
            - Acho que sim. – Uma idéia lhe veio a cabeça, mas logo fugiu.
            A Cineasta parou por um segundo. Até que fazia sentido, mas uma coisa ainda encafifava seu cérebro:
            - Então por que ela fica tão violenta?
            -... É nesse filme que vários demônios habitam o corpo dela?
            - Não. Isso é no “Exorcismo de Emily Rose”.
            - Hmm... Então vai ver nesse caso o demônio só está irritado por que é apenas uma criança de 12 anos. – Bebeu um pouco do café com chantilly e percebeu que o gosto estava começando a ficar estranho...
            - E se fossem vários demônios?
            - Bem, é só você parar para pensar. Imagine que você quer férias do inferno e decide habitar um corpo, mas junto de você chegam mais 40 demônios... As vezes 99! Basta ver Jesus Cristo contra o Legião. Enfim, acho que eu ficaria irritado de ter que dividir o espaço espiritual com mais um monte de demônios cuja violência e sede de sangue são intrínsecas de nossa raça.
            - Faz sentido. – Sua bebida agora estava na temperatura certa.


            - ARGH! – Berrou o Menino Ottis do outro lado do Café.
            - O que foi, Ottis? – Perguntou o Geléia preocupado com o menino ficando fora até tão tarde.
            - Meu refrigerante... Ta com gosto de agonia, violência e sofrimento. – Parou, olhou para a lata e voltou a beber. – Gostaria de bater nos meninos folgados da escola agora mesmo, Geléia.
            - Vou chamar o Padre.
 
"Quero dizer, o que ele pode obter disso? Ele não vai conseguir poder político nem força física... Ela tem 12 anos, pelo amor de Deus!"